terça-feira, 15 de outubro de 2013

Quando uma abordagem é legítima e quando ela é abusiva?


Da busca pessoal na fiscalização do trânsito, e outros embates.

Além do exposto, existem embates e discussões doutrinárias sobre aspectos que rondam a abordagem policial, como a representada através da lei nº 9503, de 23 de setembro de 1997 que institui o Código de Trânsito Brasileiro, e, em seu anexo I, define Policiamento Ostensivo de Trânsito (a famigerada Blitz) como a função exercida pela Polícia Militar, para fiscalizar veículos e motoristas, zelando pela segurança pública e pelas normas de segurança de trânsito. Contudo, a realização dos bloqueios policiais não possui o escopo primeiro de fiscalização de veículos e condutores, mas sim, o de abordar "preventivamente" o cidadão, buscando precaver e inibir a sociedade em face de condutas delituosas. Destarte, como já indicado, a observância da fundada suspeita é essencial à abordagem, pois, sem ela, o ato reveste-se de ilegalidade, banalizando-se o instrumento da busca. Nesta situação, os veículos selecionados para a abordagem, salvo eventuais exceções, são escolhidos ao acaso, parados indiscriminadamente, por amostragem, para revista pessoal do condutor e dos ocupantes, bem como do veículo, sem qualquer denúncia ou indício de cometimento de ato criminoso, logo, sem a legitimação da fundada suspeita. Assim, Souza demonstra em seu artigo que,
não é legal e legítima a solicitação do agente policial para que o condutor de um veículo saia do mesmo para se submeter à revista pessoal, salvo quando ocorrer a "fundada suspeita" de que esteja transportando produto de natureza ou de origem criminosa. Não se admite critérios subjetivos, assim é admissível a recusa do condutor em sair do veículo, não constituindo esta simples recusa em crime de desobediência do art. 330 do Código Penal e pelo mesmo motivo não há que se falar em crime de desacato [27].
Ou, nas palavras de Silva Junior:
Portanto, o baculejo será ilegal quando caracterizar-se como atividade estatal preventiva de delito. Como ocorre, por exemplo, no chamado bloqueio relâmpago ou blitz que realiza também a busca pessoal de maneira genérica – sem a fundada suspeita. Todos que forem parados no bloqueio são revistados. Essa atividade do Estado não tem previsão na ordem jurídica. Entenda-se bem. A blitz de trânsito, aquela que fiscaliza documentos e condições do veículo tem previsão legal no Código de Trânsito. Ilegal é o bloqueio policial que submete o cidadão ao baculejo como ação preventiva de delito. Ele não é suspeito de ocultar nada. Na verdade, é um azarado, estava no local errado na hora errada; por isso obrigado a descer do carro, mãos na cabeça, ser apalpado e o carro vasculhado, sob a mira de arma de fogo e aos olhos de todos [28].
Rogério Greco entende que a blitz pode e deve ser realizada, como atividade de prevenção, não obstante, observando-se a suspeição fundada, tendo como intolerável qualquer abuso [29], e afirma a prerrogativa de função de magistrados e promotores, entre outras autoridades com prerrogativas de função, como fator de dispensa em abordagens:
em carro particular não pode ser feita em pessoa que goza de foro com prerrogativa de função. Ou seja, um magistrado ou um membro do ministério publico não pode ser revistado por agentes policiais, desde que se identifique; e, caso haja duvidas sobre a sua identidade, o fato deverá ser encaminhado à unidade policial mais próxima, para que o respectivo chefe da instituição compareça e proceda a revista, ou da forma que entender cabível [30].
As revistas realizadas em aeroportos são reguladas através do Decreto nº 7.168, de 05 de maio de 2010, que dispõe sobre o Programa Nacional de Segurança da Aviação Civil Contra Atos de Interferência Ilícita, disciplinando a busca pessoal como revista corporal, vestual, e em demais objetos realizada por policial ou por agente de proteção da aviação civil, com consentimento do inspecionado, na existência de suspeita de que haja arma ou algum objeto proibido ou na impossibilidade da inspeção por outro método, sendo vedado o embarque do passageiro que não permitir a inspeção. Távora e Alencar discordam, afirmando que abordagens realizadas em aeroportos, boates e festas não são reguladas pelo CPP, e devem "atender a razoabilidade e respeitar a intimidade. Estão afetas ao lado contratual. Aquele que não desejar se submeter à mesma, tem a opção de não se valer do serviço ofertado ou simplesmente não frequentar o estabelecimento [31]".
Apoiando a idéia de busca preventiva em eventos, independente de fundada suspeita, Assis entende que
a busca e a revista pessoal tem caráter mais preventivo do que repressivo, podendo ocorrer de forma preventiva nos campos de futebol e locais de show onde ocorra aglomeração considerável de pessoas (...) quando ela é preventiva, não visa ninguém em especial, todos sendo submetidos a busca. Em face do aumento da violência e criminalidade, também se faz busca pessoal preventiva por meio de instrumentos nos bancos e até em escolas [32].
Apesar das disparidades, é unânime o entendimento que a forma da abordagem, em qualquer dos casos ilustrados, deve se pautar pela razoabilidade e respeito à dignidade e direitos individuais do homem. Isto posto, exigir que alguém deite ao chão em postura de submissão, utilizar-se de armamento em riste ao revistado, conduzir a revista pessoal de forma excessivamente constrangedora, sem que haja real necessidade para tal, é conduta ilegal. Medidas enérgicas são consideradas excessos quando desnecessárias, acrescentando que, as abordagens realizadas em espetáculos, shows, que particularizam o indivíduo e não sua conduta para definição da fundada suspeita, não possuem outra forma, se não, a de total ilegalidade. E, mesmo possuindo indícios que fundamente a fundada suspeita, devem-se evitar atos humilhantes e desmoralizantes além do razoável, não olvidando que a busca é realizada em favor da segurança coletiva e do cidadão, nunca como instrumento de ofensa ao indivíduo.
Ainda em exposição de embates, existem, em determinadas unidades policiais e operações, o obrigatório atendimento a número específico de abordagens, quando o serviço é realizado por meio de rádio patrulhamento em viaturas. Assim, há a determinação por parte dos superiores hierárquicos que administram esse serviço, de que sejam realizadas abordagens pessoais em números pré-determinados, exigindo-se do policial o cumprimento de metas quantitativas de buscas pessoais, incidindo em ilegalidade, visto essa exigência de que se realize um ato administrativo que limita direitos individuais, independente da existência de seus requisitos.
Ante o exposto diversificado de interpretações quanto à utilização da abordagem pessoal, suas limitações, os elementos que possibilitam sua feitura, e a inclusão ou não da fundada suspeita como elemento essencial ao tema, surge a lancinante necessidade se controlar essa desarmonia, bem como, combater a utilização indevida da abordagem, que segue sendo realizada, confrontando a ordem e a legalidade.

5.Considerações Finais.

Em respeito aos direitos individuais e a dignidade da pessoa humana, a abordagem pessoal não recebe devida atenção pela legislação brasileira, que, sem compromisso, entrega a enorme responsabilidade de limitar direitos individuais, partindo de um conceito subjetivo, ao policial militar, confiando em sua imparcialidade e na sua leal utilização do instrumento de abordar. A busca pessoal é essencial sim, pois através dela impede-se a realização de crimes diariamente, bem como, eleva-se a sensação de segurança da sociedade. Contudo, possui parâmetros a serem analisados, que, na sua inobservância, eiva de ilicitude sua realização, deixando o policial de ser legítimo representante do Estado, para figurar-se a margem da lei. A Fundada Suspeita é elemento essencial que autoriza e limita esse ato, não existindo fundamentação para a busca pessoal sem este elo de conexão. Todavia, não existe definição específica do termo e, analisando o contexto onde surge a busca, nem deve existir, pois é impossível definir todas as situações que apontem a necessidade da revista. A quem entenda a argúcia policial como legitimadora, devido a sua experiência em campo, outros estudiosos afirmam a necessidade da concretização da suspeita, seja através de denúncia, ou da própria verificação do serviço policial na área, retirando achismos e conceitos pré-estabelecidos da gama de sua realização. Apesar da divergência, entende-se, consoante a maioria dos estudos analisados, que fora da fundada suspeita, do respeito aos direitos individuais e da dignidade da pessoa humana, "não existe salvação", e, o policial militar que utiliza o instrumento da busca pessoal por meio de critérios próprios, opinativos, quantitativos, ou não atendendo o principio da legalidade ao não basear-se nos ditames da lei, realiza abuso de autoridade e constrangimento ao cidadão.
A busca pessoal é ato administrativo limitador de direitos individuais, previsto em lei, instrumentalizado pelo poder de polícia, a fim de salvaguardar a segurança da sociedade, e legitimado através da fundada suspeita, que, deste modo, é a concretização da imprecisa suspeição, por meio de condutas que demonstrem a possível realização de um ilícito. Utilizar-se desse instrumento para realização de ações preventivas, como ocorre em bloqueios policiais, para estabelecer filtragens sociais ou raciais, "escolhendo" aqueles que serão abordados, ou até mesmo, quando a ação for legítima, para utilizar-se excessivamente deste instrumento, é ilegal, e não compreende fato autorizante da busca pessoal por limitar direitos individuais sem a permissão do Estado, e sem o intuito pró-sociedade, assim também deve ser entendido o modo pelo qual se realiza a abordagem. O policial, além do respeito aos direitos individuais, deve atenção a segurança do revistado e a própria segurança, sendo possível a admissão por uma postura enérgica, se contextualmente adequada para a realização da busca, evitando o uso da força, desde que a razoabilidade exija. Contudo, não atendendo a razoabilidade imposta, em face à situação, o policial incide em abuso.
Entretanto, vivendo em uma sociedade selecionadora, preconceituosa e discriminante, que estigmatiza estereótipos como alvos e define o caráter de um homem por suas vestes, cor, ou classe social, é difícil construir essa imparcialidade, até porque, o policial, antes de ser um representante estatal, é fruto dessa sociedade, é, apesar de sua posição de representante, mais um cidadão, e, geralmente, desenvolve-se justamente no meio em que se utiliza da abordagem ilegal com mais "liberdade". Consoante a esta verdade, nota-se a complexidade de esperar em um homem, que, ao exercer a função miliciana, seja imparcial e tenha seu raciocínio livre de vícios e conceitos firmados.
Quanto à falta de limitação ou de lei em face de busca pessoal, o entendimento é o mesmo quanto ao restante do ordenamento brasileiro: é necessária a organização deste desalinho. Reformulações das leis que versam sobre a busca pessoal, por mais que pareçam atraentes, não são urgentes, devendo surgir, na verdade, uma melhor organização e posicionamento dos doutrinadores em face aos fatos que rondam o tema, visando extinguir as duvidas que maculem o instrumento, pois, mesmo quando entende-se "fundada suspeita" como a existência física de fato que autorize a busca, ainda imperam duvidas quanto a outras questões que participam da matéria. Contudo, durante essa empreitada de conceituar a abordagem policial como um todo, inserido em um ordenamento jurídico que, por si, já deve reverência ao princípio da dignidade humana, não se deve olvidar de combater a prevalência da esfera "opinativa" do policial e a utilização criminosa da abordagem, fiscalizando a observância dos direitos individuais, da dignidade da pessoa humana e do princípio da legalidade, combatendo a abordagem ilícita, bem como, os seus realizadores.


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